Em 34 anos de profissão, é a primeira vez que Maria Fátima Maia da Silva, 50 anos, se vê longe das salas de aula. Por recomendação médica, ela está afastada há dois meses pelo stress acumulado ao lecionar em sete escolas estaduais do Paraná.
A professora conta que sua peregrinação pelas unidades da rede começou em fevereiro deste ano, quando o governo do Estado colocou em prática a redução das horas-atividades dos docentes, passando de sete para cinco as horas de trabalho do professor em uma carga horária de 20 horas/aulas semanais.
Até a decisão, Maria trabalhava em uma única escola onde cumpria a jornada de 40 horas semanais, 20 horas da lotação em Biologia e 20 em Ciências. Após a medida, a professora teve as horas de trabalho reduzidas para 13 e se viu obrigada a procurar por outras instituições para compor o tempo de cada disciplina.
“Na parte da manhã, fiquei com duas escolas. Negociei para que a carga de 20 horas de uma lotação fosse alcançada em quatro dias, então cumpria três manhãs em uma escola e uma na outra, com cinco horas por período. Para cumprir as 20 restantes, peguei mais cinco escolas para lecionar à noite, cumprindo por dia da semana uma carga de quatro horas em cada uma delas”.
Maria conta que, além da jornada exaustiva em diferentes salas de aula, pesava também o tempo de deslocamento até cada um dos endereços. Entre idas e voltas ela chegava a passar quatro horas no transporte público. A rotina foi interrompida em junho quando a estafa falou mais alto.
Na visão da vice-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Marlei Fernandes de Carvalho, o caso desrespeita o previsto na Lei Federal nº 11.738/2008 que institui o piso salarial para os profissionais do magistério público da educação básica. No quarto parágrafo do segundo artigo da Lei consta que os professores devem ter assegurados 2/3 de sua carga horária para a interação com os estudantes.
“Isso significa que o 1/3 restante deve ser reservado para o planejamento. Com a redução das horas, descarta-se esse tempo de trabalho fora da sala de aula, o que deve fazer com que muitos professores penalizem seu tempo livre para cumprir todas as demandas”, avalia.
Precarização
Outro caso repercutiu junto à comunidade docente do município de Angelina, em Santa Catarina. Diante da demanda de contratar educadores físicos para duas escolas da rede municipal, a prefeitura publicou o pregão presencial nº 018/2017, em abril, baseado em uma licitação de “menor preço global”. Na prática, um leilão reverso para a contratação de professores.
O edital partia de um pagamento máximo de 1200 reais para uma jornada de 20 horas semanais, mas atrelava sua definição a um leilão que deveria ser feito com o envio de propostas salariais a menores custos. O processo só não foi adiante porque foi interpelado pelo Ministério Público de Contas (MPC-SC) via procedimento administrativo.
“É um momento delicado de perspectivas para esses profissionais”, reflete o presidente do CNTE, Heleno Araújo, fazendo referência à precarização que pode ser esperada para a categoria docente no bojo das reformas e medidas acatadas pelo governo Temer.
Para além da Lei da Terceirização, já em vigor, e da Reforma Trabalhista, que passa a vigorar a partir de novembro, Araújo relembra os impactos da Emenda Constitucional 95 que, entre outras medidas, congela os investimentos públicos pelos próximos 20 anos. “Com menos recursos para a educação, temos prejudicadas as metas 15 a 18 do Plano Nacional de Educação que previam ações de valorização docente.”
Ele também comenta a contribuição da Reforma do Ensino Médio no processo de desvalorização. “A medida altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e acrescenta o notório saber como critério de validação de contratação. Ou seja, serão aceitos profissionais sem licenciatura nas escolas, o que também significa precarizar.”
Para os especialistas, é preciso considerar ainda que a precarização da carreira docente se dará em um contexto já desfavorável, com base no número de professores que atuam como temporários nas redes, ou seja, não fazem parte do quadro efetivo. O Estado do Mato Grosso, por exemplo, mantém 60% de seus professores como temporários; são igualmente expressivos os porcentuais de Santa Catarina, 57%, Mato Grosso do Sul, 50%, Minas Gerais 48%, Pernambuco 44% e São Paulo, 34%.
Na visão de Heleno, isso burla o previsto na legislação. “Na Constituição Federal consta que o ingresso a um serviço público deve ser feito por meio de concurso público”. O especialista reforça que a contratação temporária deve ser prevista em situações de emergência, “para que as demandas não deixem de ser atendidas e, por isso mesmo, vista como exceção e não regra”.
Os direitos trabalhistas estão em jogo. Como os professores temporários não podem criar vínculo com as redes, eles precisam alternar tempo de aula com tempo de afastamento.
Segundo a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, até 2015 os professores paulistas temporários cumpriam quarentena, ou seja, ficavam quarenta dias afastados e voltavam a lecionar na rede. Já chegou a ser “duzentena”, com o afastamento de um ano a cada um lecionado. “Até que na greve de 2015 conseguimos uma contratação de quatro anos sem quebra de contrato”, lembra. Segundo a presidente, benefícios como o quinquênio ou a sexta parte, gratificações dadas a servidores públicos por tempo de trabalho, só foram adquiridos para a categoria em 2014.
No contexto da terceirização, os especialistas temem que os concursos públicos deixem de ser realizados e que os professores sejam terceirizados como já acontece com outros profissionais da educação, como merendeiras, porteiros e seguranças. Ou ainda que se entregue a administração das escolas e todo o seu quadro às organizações sociais (OSs).
A ação não seria novidade no setor. No ano passado, o estado de Goiás publicou um edital chamando organizações sociais a assumirem a gestão de escolas. A decisão causou mobilização por parte dos estudantes, que chegaram a ocupar 28 escolas no estado. O edital acabou sendo suspenso pela justiça goiana.
Heleno relembra que enquanto servidores públicos, os professores dispõem de dispositivos legais que buscam proteger a carreira e promover subsídios que estimulem a permanência dos que já estão em atividade e o ingresso de estudantes na área. “Em empresas, eles estarão submetidos à disputa do mercado, o que é preocupante”.
Direitos perdidos
A apreensão também chega à comunidade de professores das escolas particulares. Na época da aprovação da Reforma Trabalhista, o Sindicato dos Professores do ABC (Sinpro-ABC) lançou uma nota com os principais impactos à carreira dos professores.
Entre as principais precarizações, a questão do negociado sobre o legislado; o parcelamento das férias em até três vezes ao longo do ano; a possibilidade das escolas não mais remunerarem financeiramente os trabalhos extras dos professores, que passariam a contabilizar em bancos de hora; o trabalho intermitente, que abriria a brecha para que professores ficassem à disposição das escolas 24 horas, e fossem remunerados apenas pelo período trabalhado; e a terceirização irrestrita, que pode dar fim a benefícios empregatícios como 13º salário, participação nos lucros e férias.
por:Ana Luiza Basilio, da Carta Educação
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