Entre os trabalhadores da rede pública de Belo Horizonte com teste positivo para o
novo coronavírus, 417 são técnicos em enfermagem, 195 são agentes
comunitários de saúde (ACS) e 121 são enfermeiras -
Foto: Breno Esaki / Agência Saúde DF
"É viver um dia de cada vez e se apoiar nas boas lembranças". É assim que o jovem Hudson dos Santos, que perdeu a mãe por covid-19 no dia 14 de agosto de 2020, descreve um sentimento tão intenso como o luto.
Shirlene Alves dos Santos foi uma dos seis trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) que se falaceram desde o início da pandemia.
Ela tinha 53 anos e era Técnica em Enfermagem. Apesar de ter diabetes e problemas respiratórios, Shirlene não foi afastada do trabalho.
“Como minha mãe tinha comorbidades, não devia ter sido cogitada para estar na linha de frente da doença", avalia o filho. "A prefeitura e até mesmo a gerência do posto podiam ter tido um olhar mais cuidadoso, nem que a transferissem para outra função. Teve negligência".
"Ela estava com muito medo. Já havia perdido colegas e estava trabalhando muito. A rotina estava dura e isso tudo a deixou à flor da pele", lembra Hubson, que descreve a mãe como "o chão" seu e do irmão, de 17 anos.
Quando Shirlene se infectou, a doença evoluiu de forma rápida e a família foi pega de surpresa. Em pouco mais de uma semana, a técnica faleceu.
Para Hudson, a parte mais difícil desse processo foi “acostumar com a presença da ausência”, como define. Também dói não poder tido a possibilidade de acompanhá-la durante a internação e ter que permanecer de quarentena em meio a uma mistura de sensações geradas pela morte da pessoa que mais o amou.
Até mais, Célio
A fala de Hudson é parecida com o relato de Sueli da Silva, irmã de José Célio da Silva, também Técnico em Enfermagem do SUS-BH, que faleceu por complicações da covid-19 no dia 7 de agosto de 2020.
“Celinho”, apelido carinhoso dado pela família, era diabético. Segundo Sueli, mesmo com férias a vencer, o servidor não foi afastado e vivia uma rotina de trabalho extenuante, que incluía horas extras.
“Ele estava com duas férias vencidas. Quando viu que 'o trem' estava pegando, pediu, mas não foi atendido porque o quadro [de profissionais] estava pequeno. Ele trabalhava praticamente todos os dias. Cheguei a ficar uns três, quatro dias sem vê-lo", conta.
"Entre mortos e infectados, a maioria é da enfermagem.
São trabalhadores extremamente mal pagos
e com jornadas exaustivas" / Diego Vara / Agência Brasil
Assim que ficou doente, Célio se frustrou e ficou deprimido. Para evitar a contaminação de Sueli e de outra irmã, se trancou no quarto. Dormia de máscara. Se sentia culpado. Em pouquíssimo tempo, a falta de ar apareceu.
"No outro dia, ele foi para a urgência e essa foi a última vez que o vi. Ele entrou no Uber e disse: 'tenho que ir sozinho, não adianta ir comigo. Vou chegar lá e ser internado'".
Antes de morrer, Célio havia sido transferido para o Setor de Farmácia, menos perigoso para trabalhadores do grupo de risco. No entanto, faleceu sem tirar férias.
“Quando fui no hospital que ele trabalhava pegar suas coisas, fiquei emocionada. Todo mundo elogiou Celinho, desde o segurança até o médico. Eles diziam ‘Celinho conversava com todo mundo! Ele comprava café, pão, trazia para gente'. Isso era bem o estilo dele. O Célio era isso", relembra Sueli, com ternura.
Amada esposa, Márcia
"São 37 anos desde que a conheci e 33 anos, 2 dias e 13 horas de casados". José Elias, marido da Agente Comunitária de Saúde Márcia Aparecida Aquino de Oliveira, contou cada segundo da vida a dois. Juntos, tiveram três filhos e uma neta.
Márcia faleceu por covid no dia 27 de setembro de 2020. De acordo com o marido, enfrentava pré-diabetes, hipertensão, sinusite e rinite crônicas.
No momento, ele avalia entrar na Justiça contra a Prefeitura de Belo Horizonte para conseguir a Comunicação por Acidente de Trabalho (CAT). O documento que José deu entrada foi indeferido pelo município.
"Esperei mais de dois meses e falaram que ela não tem direito à CAT porque trabalhava na rua e que pode ter pegado a doença visitando residências. Os agentes comunitários estão proibidos de entrar em casas, e ela cumpriu. Ela tinha contato com pessoas no centro de saúde onde trabalhava. Lá, o médico chefe pegou, a dentista, um monte de gente…", desabafa.
Márcia, como os outros trabalhadores, foi embora rápido. Quando fez o exame que detectou a infecção por covid, já estava com 50% do pulmão comprometido.
José dividia as contas da casa com a esposa e agora aguarda o pagamento das verbas rescisórias da companheira – período que pode durar seis meses – para quitar dívidas.
"Os colegas de trabalho me disseram que ela era um espelho. E ela era realmente sensacional. Sempre se prontificou a atender regiões que ninguém queria ir", pontua. Para lidar com o luto e a tristeza, José iniciou terapia e aguarda atenção da PBH.
Além de Márcia, José Célio e Shirlene, faleceram os trabalhadores da saúde do SUS-BH Gerônimo Batista Santos, 53 anos, técnico em enfermagem; Marcos Evangelista de Abreu, 54 anos, médico pediatra e Juliana Rodrigues Pereira, 42 anos, agente comunitária de saúde (ACS).
Mortes estão ligadas às condições de trabalho
O Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte (CMS-BH) avalia que o acesso a equipamentos de proteção e a estrutura das unidades de saúde – hospitais, centros, pronto-atendimento, entre outras – influenciam diretamente o número de profissionais infectados, contaminados e mortos.
"Se observarmos entre mortos e infectados, a maioria é da enfermagem. Não é por acaso. São trabalhadores extremamente mal pagos e com jornadas exaustivas, como por exemplo o nosso colega Gerônimo, [Técnico em Enfermagem]", explica Bruno Pedralva, secretário do Conselho.
"Ele era efetivo, mas tinha um contrato adicional na Prefeitura de Belo Horizonte e ainda fazia hora extra. Certamente trabalhava mais de 60 horas por semana para conseguir a renda necessária para sobreviver".
A categoria da enfermagem, que engloba enfermeiros, técnicos e auxiliares, não possui piso salarial determinado por lei ou convenção coletiva, assim como é protagonista de uma luta antiga pela regulamentação de 30 horas de trabalho semanais. O valor das remunerações varia de estado para estado e entre serviço público e privado.
De acordo com a tabela de vencimentos base e salários da prefeitura de Belo Horizonte, o salário de um técnico em enfermagem na cidade gira em torno de R$ 1.400.
Consequências de um salário baixo
Trabalhar mais para complementar a renda significa ter mais contato com a doença e, consequentemente, mais risco de contágio – sem dúvida o principal problema a afetar os profissionais de saúde envolvidos diretamente nos cuidados de pacientes diagnosticados ou com sintomas de covid-19.
O alto grau de exposição nos Centros de Saúde ou nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) tem causado uma quantidade elevada de profissionais contaminados na capital mineira.
Segundo o último boletim epidemiológico divulgado pela Prefeitura de Belo Horizonte em 11 de março de 2021, já são mais de 2 mil trabalhadores com teste positivo, dado que inclui também a rede privada.
Fonte: Boletim Epidemiológico de 11 de março de 2021 /
Prefeitura de Belo Horizonte / Gráfico: Brasil de Fato MG
Entre os trabalhadores da rede SUS com teste positivo, 417 são técnicos em enfermagem, 195 são agentes comunitários de saúde (ACS) e 121 são enfermeiras.
Os trabalhadores administrativos com covid-19 já somam 108 casos positivos, além de 90 agentes de combate de endemias e 89 médicos. A maior parte dos contaminados trabalham nos centros de saúde ou em UPAs.
Para o presidente do Sindicato dos Servidores Públicos de Belo Horizonte (Sindibel), Israel Arimar de Moura, os números refletem o fato de que a maior parte da população procura os equipamentos do SUS para atendimento e os técnicos de enfermagem são os profissionais que atuam em contato mais direto com os pacientes. Eles estão na chamada “ponta”.
Fonte: Brasil de Fato
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