O ENSINO RELIGIOSO
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE EDUCANDOS EM ESCOLAS PÚBLICAS NO BRASIL
imagem meramente ilustrativa/reprodução internet |
Entrevista:
1.
Agência Comunidade – Sabemos que você tem formação em
Ciências da Religião, com doutorado na PUC-SP, por isso pedimos que nos ofereça
uma reflexão sobre a questão do Ensino Religioso que voltou ao debate no
cenário nacional nos últimos dias. Houve recentemente um debate amplo sobre a
exclusão do Ensino Religioso (ER) nas escolas públicas do Brasil. Essa é uma
questão central para o debate público sobre Ensino Religioso ou existem outras
questões mais importantes?
Pe. Gilberto
Tomazi - Iniciou na década de 1990 um profundo debate sobre o valor e o
significado desta disciplina na formação dos educandos da Educação Básica no
Brasil. O debate também se ampliou no sentido da formação necessária para os
docentes e sobre a questão da remuneração desses profissionais por parte do
Estado. Também foi questionada a questão dos conteúdos ministrados em sala de
aula, da dimensão confessional, interconfessional ou não confessional, bem como
da obrigatoriedade ou não do aluno participar das aulas de ensino religioso.
2.
Agência Comunidade - Está acontecendo um amplo debate
em diversas regiões do Brasil com audiências públicas, conferências,
proposições e documentos que pedem um parecer e resolução do Conselho Nacional
de Educação (CNE) a respeito de diversas questões da BNCC (Base Nacional Comum
Curricular) nos sistemas de ensino. Entre as questões aparece a proposta de
exclusão do ER ou de um certo tipo de ER, como avaliar isso?
Pe.
Gilberto Tomazi - O ER foi definido nos termos do artigo 210 da Constituição
Federal de 1988 (CF/88), no qual afirmou no Parágrafo 1º que “O ensino
religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários
normais das escolas fundamentais” (BRASIL, 2014a). Com isso, o texto
constitucional reconheceu a importância de um ER para a chamada “formação
básica comum” na escola pública, que tem acontecido no período de maturação da
criança e do adolescente, no ensino fundamental e no ensino médio. Porém o
debate permaneceu no que tange à possibilidade ou não de um ER confessional.
Partindo
do pressuposto do Estado laico, a Procuradoria-Geral da República, em 30 de
julho de 2010, entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 4.439
do ER de caráter confessional, motivando o Ministro-relator do Supremo
Tribunal, Luís Roberto Barroso, a organizar a primeira audiência pública sobre
esse tema na história da educação brasileira. Essa audiência aconteceu em 15 de
junho de 2015, com a participação de entidades religiosas, professores
universitários e outras pessoas interessadas.
É
verdade que o ER tem questões peculiares que ainda não foram suficientemente
debatidas e nem superadas na esfera pública do ensino. Esse projeto de exclusão
do ER confessional permite retomar a discussão sobre a formação integral e cidadã
das pessoas que passam pelo ambiente escolar e sobre as demandas de
conhecimento que brotam das experiências religiosas dos educandos. A
contribuição do ER vinha sendo configurada na perspectiva de uma necessária
aprendizagem voltada para a convivência respeitosa com as várias diferenças,
sejam religiosas, políticas, sexuais e étnico-raciais, como imprescindíveis
para a vida coletiva e também para o enfretamento de intolerâncias e muitas
formas de discriminação que persistem no Brasil e no mundo. Temos que
reconhecer o Brasil como formado por um pluralismo imenso que reuniu culturas
de diferentes partes do mundo numa nova síntese cultural rica, original e
complexa. Nessa perspectiva da socialização do conhecimento religioso acumulado
histórica e culturalmente, o caráter facultativo do ER precisava ser revisto. É
uma anomalia afirmar que este conhecimento pode ser dispensado ou
desinteressante para a formação integral e cidadã do educando. Todavia, boa parte das instituições religiosas
não estavam satisfeitas com o caráter cultural e plural do ER e passaram a
exigir mais espaços para experiências e conteúdos religiosos e confessionais no
espaço escolar. É provável que isso influenciou o STF a tomar a decisão que
tomou no dia 27 de setembro. Outra influência deve ter sido o acordo firmado entre o Brasil e o Vaticano
prevendo "o ER, católico e de outras confissões religiosas",
respeitando “a diversidade cultural religiosa do Brasil" e proibindo
"qualquer forma de discriminação".
3.
Agência Comunidade - De uma forma geral, a legislação
educacional vigente garantia que o ER, enquanto uma disciplina obrigatória,
contribuísse para o cultivo de valores humanos e sociais imprescindíveis para a
convivência cívica na escola e na sociedade em geral e o desenvolvimento da reflexão
sobre experiências religiosas, de interesse de grupos sociais diversos - agnósticos, ateus, cristãos, umbandistas
entre outros - no que tange à busca da ética,
da paz e do cuidado com a Casa Comum. Todavia, essa perspectiva voltou a ser
questionada e, ao que parece, o STF tomou novas definições?
Pe. Gilberto
Tomazi - Sim. Havia diferentes entendimentos e formas de aplicação da lei do ER
nos sistemas de ensino, então a ação processual proposta pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2010, pela então vice-procuradora
Déborah Duprat, sugeria que o ER só poderia ser oferecido se o conteúdo
programático da disciplina fosse não-confessional; consistisse na exposição
“das doutrinas, práticas, histórias e dimensão social das diferentes
religiões”, sem que o professor privilegiasse algum credo. Então, esse assunto,
voltou a ser discutido algumas vezes no plenário do Supremo Tribunal Federal e,
no dia 27 de setembro de 2017, venceu o entendimento contrário, de que está
autorizado o ER confessional nas escolas públicas; as aulas poderão contemplar
conteúdos doutrinais de uma religião. O voto (de desempate) da presidente do
STF, ministra Cármen Lúcia, considerou não haver na autorização conflito com a
laicidade do Estado, uma vez que a disciplina deve ser facultativa. Percebe-se
que a reflexão do STF foi reduzida ao mínimo denominador comum, pois a
permissão para o ensino confessional nas escolas públicas teve como referência a
não obrigatoriedade do aluno frequentar essa disciplina. Na prática isso
significa que se um professor de ER for espírita, os alunos que não se
identificam com espiritismo, ou mesmo aqueles que se identificam, poderão, por
ocasião da matrícula, pedir autorização e deixar de participar daquela
disciplina. O que farão estes alunos
naquele horário? Qualquer coisa serve no vazio de uma aula não frequentada? Se
estava praticamente superada a ideia de “ER de matrícula facultativa” por conta
do seu caráter plural e cultural, agora, com a abertura para novas formas de
proselitismo e fundamentalismo religioso nas escolas, é bem provável que aumente
consideravelmente o número daqueles que pedirão para ser dispensados dessa
disciplina.
4.
Agência Comunidade – E como está caminhando o ER em
Santa Catarina?
Pe.
Gilberto Tomazi – Santa Catarina foi um dos primeiros estados da federação a
superar a educação religiosa (catequética e doutrinal) para um ER
interconfessional (ecumênico) voltado mais para as dimensões da ética e dos
valores humanos e cristãos. E, depois disso, ainda no final da década de 1990, o ER foi incluído como disciplina na Carta
Magna, nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais, foi
regulamentado e contemplado como área de conhecimento. Para capacitar
profissionais para o ER, já em 1998 houve curso de especialização em ER
oferecido pela UNOESC-Videira em parceria com a Diocese de Caçador e, em 2001,
foi autorizada
a abertura de cursos de licenciatura para a formação específica de professores,
conforme o artigo 37 da Lei Estadual Complementar nº. 170/1998; sendo definido
o ER nas escolas da rede pública estadual mesmo não existindo as diretrizes
curriculares nacionais do MEC. Recentemente, na nova proposta curricular de
Santa Catarina, foi reafirmada a relevância da ER na área de Ciências Humanas
na Educação Básica.
O reconhecimento da
importância e da necessidade do ER nas escolas públicas do sistema estadual de
Santa Catarina no passado conferiu um lugar de destaque na formação dos
profissionais da educação para o Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa
(CIER), e atualmente para o Conselho para o ER (CONER-SC), para a Associação
dos Professores de ER (ASPERSC), e para o Fórum Nacional Permanente para
o ER (FONAPER), entre outros.
5.
Agência Comunidade – Pode-se dizer que o debate sobre ER
nas escolas vai continuar? Algo ainda não foi devidamente debatido sobre isso?
E, o ER está preparado para refletir sobre a diversidade religiosa da
atualidade? Sobre a questão da religião na esfera pública?
Pe.
Gilberto Tomazi – A questão que não foi devidamente debatida neste processo não
é somente da relação entre “laicidade do Estado e ER”, nem, também, da relação
entre ensino confessional, interconfessional, anticonfessional ou da cultura
religiosa, mas, principalmente, de como lidar com as diferentes experiências,
tradições e demandas que brotam do mundo religioso dos educandos, por parte do
Estado e, como lidar com isso nos sistemas de ensino público do país?
Na questão das
religiões na esfera pública, nosso país também carece de debate e de definições
urgentes a respeito: dos fundamentalismos religiosos; das lideranças religiosas
que assumem cargos públicos e, quantos deles, defendem ideias nazifascistas;
das “Igrejas” que são usadas para lavagem de dinheiro do narcotráfico e da
corrupção; da manipulação de textos sagrados por “vendilhões do templo” para
acumularem e se apropriarem de grandes fortunas, extorquidas de pessoas
ingênuas ou carentes de conhecimentos religiosos; das violências,
discriminações, moralismos retrógrados ou reacionários, perturbações mentais e
doenças diversas que tem origem em experiências religiosas orientadas por
charlatões ou indivíduos sem preparo mínimo, etc. Mas isso não é tudo nem
haverá de ser o espírito dominante de nossa época, de qualquer forma é uma
preocupação crescente que exige atitudes da sociedade, e também opções ou
definições políticas e jurídicas.
Enfim, concordo
que deve haver debate público a respeito dos conteúdos oferecidos na disciplina
de ER, bem como da formação necessária para o docente desta área do
conhecimento. As pessoas interessadas e representantes de instituições
religiosas e educacionais diversas haverão de se reunir para debater, propor e
escolher os conteúdos e métodos do ER. Se isso acontecer e houver bom senso por
parte de todos os envolvidos o ER dará um passo importante na sua busca e
socialização do conhecimento religioso acumulado historicamente. E isso serve também
para o ensino de história, geografia, matemática e demais disciplinas.
6. Agência Comunidade – Enfim, como você vê o papel e o
futuro do ER? Ele continuará sendo indispensável para a formação integral do
ser humano?
Pe.
Gilberto Tomazi – A busca do
transcendente, negada pelo positivismo tecnicista, deve ser resgatada como
aspecto fundamental na formação do ser humano. O sentido religioso já não pode
ser negado pela escola, como caminho da ciência. Falar do ER, hoje, não significa dar aula de catequese ou
ensinar uma doutrina religiosa mas, sim, buscar o conhecimento do fenômeno
religioso. O ER não mais pode ser confundido com ensino de uma religião,
endoutrinamento religioso ou catequese. Ele, indo além do caminho da
confessionalidade e da interconfessionalidade, vem buscando, no caminho das
religiões, da cultura religiosa e do fenômeno religioso, orientações éticas,
ecológicas e até mesmo políticas, em vista da sobrevivência humana e do
planeta. A escola está responsabilizada em oferecer conhecimento e princípios
ético-religiosos, sem dogmatização nem exclusão de ninguém. O ER é, sem dúvida,
parte fundamental da educação integral. Não há como pensar no desenvolvimento
das potencialidades humanas, ignorando-se a sua dimensão transcendental. Já não
é possível pensar em educação de qualidade desconsiderando a dimensão religiosa
do ser humano. É preciso superar a visão proselitista do ER pois as diferentes
matrizes culturais e religiosas: orientais, ocidentais, africanas e indígenas
tem uma riqueza impressionante a oferecer. Para isso, faz-se necessário um
profissional de educação sensível à pluralidade cultural e consciente da
complexidade do fenômeno religioso no mundo atual. A valorização do senso
religioso, no espaço escolar, ajudará na orientação dos educandos em questões
de conhecimento pessoal, na busca do sentido da vida e do transcendente, no
despertar da consciência crítica, no reconhecimento do valor e respeito à
pluralidade cultural e religiosa do Brasil. Cabe à escola, não apenas
socializar o conhecimento religioso historicamente produzido pela humanidade,
mas também, construir novos conhecimentos, a partir da interação
professor-aluno-vivência religiosa-comunidade. Até mesmo um ateu convicto ou um
agnóstico sentir-se-á interessado pelo conhecimento das grandes tradições
religiosas, dos ritos e símbolos das mesmas, da cultura religiosa desde os
mitos, os textos sagrados orais e escritos, as várias compreensões sobre Deus
vivenciados pelas diferentes religiões e culturas. E, desta forma, o ER passará
a ser de fundamental importância na formação integral e na emancipação humana e
social.
A ignorância, o
fundamentalismo e a intransigência religiosa são as principais pedras de
tropeço na busca do diálogo religioso e da defesa do ER como disciplina, isto
é, como ciência de construção e socialização do conhecimento religioso
acumulado historicamente pelas culturas e tradições. O medo, de uns e de
outros, é que se queira reduzir as religiões a um denominador comum, onde o que
importam são apenas os símbolos e conceitos. Ao contrário, a busca do
conhecimento religioso, enquanto pluridimensional, deverá favorecer o encontro
entre diferentes experiências e visões mítico-espirituais escondidas no âmago
da história e da existência humana e contribuir para que a sociedade inicie um
novo tempo, mais democrático, dialogal, fraterno; sem guerras, desigualdades,
fanatismos e divisões.
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