sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Confira aqui a Entrevista com Pe. Gilberto sobre o ensino RELIGIOSO no processo de Formação de educandos em escolas Públicas no País.

O ENSINO RELIGIOSO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE EDUCANDOS EM ESCOLAS PÚBLICAS NO BRASIL

imagem meramente ilustrativa/reprodução internet


Entrevista:

1.                  Agência Comunidade – Sabemos que você tem formação em Ciências da Religião, com doutorado na PUC-SP, por isso pedimos que nos ofereça uma reflexão sobre a questão do Ensino Religioso que voltou ao debate no cenário nacional nos últimos dias. Houve recentemente um debate amplo sobre a exclusão do Ensino Religioso (ER) nas escolas públicas do Brasil. Essa é uma questão central para o debate público sobre Ensino Religioso ou existem outras questões mais importantes?
Pe. Gilberto Tomazi - Iniciou na década de 1990 um profundo debate sobre o valor e o significado desta disciplina na formação dos educandos da Educação Básica no Brasil. O debate também se ampliou no sentido da formação necessária para os docentes e sobre a questão da remuneração desses profissionais por parte do Estado. Também foi questionada a questão dos conteúdos ministrados em sala de aula, da dimensão confessional, interconfessional ou não confessional, bem como da obrigatoriedade ou não do aluno participar das aulas de ensino religioso. 

2.                  Agência Comunidade - Está acontecendo um amplo debate em diversas regiões do Brasil com audiências públicas, conferências, proposições e documentos que pedem um parecer e resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) a respeito de diversas questões da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) nos sistemas de ensino. Entre as questões aparece a proposta de exclusão do ER ou de um certo tipo de ER, como avaliar isso?
Pe. Gilberto Tomazi - O ER foi definido nos termos do artigo 210 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), no qual afirmou no Parágrafo 1º que “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas fundamentais” (BRASIL, 2014a). Com isso, o texto constitucional reconheceu a importância de um ER para a chamada “formação básica comum” na escola pública, que tem acontecido no período de maturação da criança e do adolescente, no ensino fundamental e no ensino médio. Porém o debate permaneceu no que tange à possibilidade ou não de um ER confessional.
Partindo do pressuposto do Estado laico, a Procuradoria-Geral da República, em 30 de julho de 2010, entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 4.439 do ER de caráter confessional, motivando o Ministro-relator do Supremo Tribunal, Luís Roberto Barroso, a organizar a primeira audiência pública sobre esse tema na história da educação brasileira. Essa audiência aconteceu em 15 de junho de 2015, com a participação de entidades religiosas, professores universitários e outras pessoas interessadas.
É verdade que o ER tem questões peculiares que ainda não foram suficientemente debatidas e nem superadas na esfera pública do ensino. Esse projeto de exclusão do ER confessional permite retomar a discussão sobre a formação integral e cidadã das pessoas que passam pelo ambiente escolar e sobre as demandas de conhecimento que brotam das experiências religiosas dos educandos. A contribuição do ER vinha sendo configurada na perspectiva de uma necessária aprendizagem voltada para a convivência respeitosa com as várias diferenças, sejam religiosas, políticas, sexuais e étnico-raciais, como imprescindíveis para a vida coletiva e também para o enfretamento de intolerâncias e muitas formas de discriminação que persistem no Brasil e no mundo. Temos que reconhecer o Brasil como formado por um pluralismo imenso que reuniu culturas de diferentes partes do mundo numa nova síntese cultural rica, original e complexa. Nessa perspectiva da socialização do conhecimento religioso acumulado histórica e culturalmente, o caráter facultativo do ER precisava ser revisto. É uma anomalia afirmar que este conhecimento pode ser dispensado ou desinteressante para a formação integral e cidadã do educando.  Todavia, boa parte das instituições religiosas não estavam satisfeitas com o caráter cultural e plural do ER e passaram a exigir mais espaços para experiências e conteúdos religiosos e confessionais no espaço escolar. É provável que isso influenciou o STF a tomar a decisão que tomou no dia 27 de setembro. Outra influência deve ter sido o acordo firmado entre o Brasil e o Vaticano prevendo "o ER, católico e de outras confissões religiosas", respeitando “a diversidade cultural religiosa do Brasil" e proibindo "qualquer forma de discriminação".

3.                  Agência Comunidade - De uma forma geral, a legislação educacional vigente garantia que o ER, enquanto uma disciplina obrigatória, contribuísse para o cultivo de valores humanos e sociais imprescindíveis para a convivência cívica na escola e na sociedade em geral e o desenvolvimento da reflexão sobre experiências religiosas, de interesse de grupos sociais diversos -  agnósticos, ateus, cristãos, umbandistas entre outros -  no que tange à busca da ética, da paz e do cuidado com a Casa Comum. Todavia, essa perspectiva voltou a ser questionada e, ao que parece, o STF tomou novas definições?
Pe. Gilberto Tomazi - Sim. Havia diferentes entendimentos e formas de aplicação da lei do ER nos sistemas de ensino, então a ação processual proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2010, pela então vice-procuradora Déborah Duprat, sugeria que o ER só poderia ser oferecido se o conteúdo programático da disciplina fosse não-confessional; consistisse na exposição “das doutrinas, práticas, histórias e dimensão social das diferentes religiões”, sem que o professor privilegiasse algum credo. Então, esse assunto, voltou a ser discutido algumas vezes no plenário do Supremo Tribunal Federal e, no dia 27 de setembro de 2017, venceu o entendimento contrário, de que está autorizado o ER confessional nas escolas públicas; as aulas poderão contemplar conteúdos doutrinais de uma religião. O voto (de desempate) da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, considerou não haver na autorização conflito com a laicidade do Estado, uma vez que a disciplina deve ser facultativa. Percebe-se que a reflexão do STF foi reduzida ao mínimo denominador comum, pois a permissão para o ensino confessional nas escolas públicas teve como referência a não obrigatoriedade do aluno frequentar essa disciplina. Na prática isso significa que se um professor de ER for espírita, os alunos que não se identificam com espiritismo, ou mesmo aqueles que se identificam, poderão, por ocasião da matrícula, pedir autorização e deixar de participar daquela disciplina.  O que farão estes alunos naquele horário? Qualquer coisa serve no vazio de uma aula não frequentada? Se estava praticamente superada a ideia de “ER de matrícula facultativa” por conta do seu caráter plural e cultural, agora, com a abertura para novas formas de proselitismo e fundamentalismo religioso nas escolas, é bem provável que aumente consideravelmente o número daqueles que pedirão para ser dispensados dessa disciplina.

4.                  Agência Comunidade – E como está caminhando o ER em Santa Catarina?
Pe. Gilberto Tomazi – Santa Catarina foi um dos primeiros estados da federação a superar a educação religiosa (catequética e doutrinal) para um ER interconfessional (ecumênico) voltado mais para as dimensões da ética e dos valores humanos e cristãos. E, depois disso, ainda no final da década de 1990, o ER foi incluído como disciplina na Carta Magna, nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais, foi regulamentado e contemplado como área de conhecimento. Para capacitar profissionais para o ER, já em 1998 houve curso de especialização em ER oferecido pela UNOESC-Videira em parceria com a Diocese de Caçador e, em 2001, foi autorizada a abertura de cursos de licenciatura para a formação específica de professores, conforme o artigo 37 da Lei Estadual Complementar nº. 170/1998; sendo definido o ER nas escolas da rede pública estadual mesmo não existindo as diretrizes curriculares nacionais do MEC. Recentemente, na nova proposta curricular de Santa Catarina, foi reafirmada a relevância da ER na área de Ciências Humanas na Educação Básica.
O reconhecimento da importância e da necessidade do ER nas escolas públicas do sistema estadual de Santa Catarina no passado conferiu um lugar de destaque na formação dos profissionais da educação para o Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa (CIER), e atualmente para o Conselho para o ER (CONER-SC), para a Associação dos Professores de ER  (ASPERSC), e para o Fórum Nacional Permanente para o ER (FONAPER), entre outros.

5.                  Agência Comunidade – Pode-se dizer que o debate sobre ER nas escolas vai continuar? Algo ainda não foi devidamente debatido sobre isso? E, o ER está preparado para refletir sobre a diversidade religiosa da atualidade? Sobre a questão da religião na esfera pública?
Pe. Gilberto Tomazi – A questão que não foi devidamente debatida neste processo não é somente da relação entre “laicidade do Estado e ER”, nem, também, da relação entre ensino confessional, interconfessional, anticonfessional ou da cultura religiosa, mas, principalmente, de como lidar com as diferentes experiências, tradições e demandas que brotam do mundo religioso dos educandos, por parte do Estado e, como lidar com isso nos sistemas de ensino público do país?
Na questão das religiões na esfera pública, nosso país também carece de debate e de definições urgentes a respeito: dos fundamentalismos religiosos; das lideranças religiosas que assumem cargos públicos e, quantos deles, defendem ideias nazifascistas; das “Igrejas” que são usadas para lavagem de dinheiro do narcotráfico e da corrupção; da manipulação de textos sagrados por “vendilhões do templo” para acumularem e se apropriarem de grandes fortunas, extorquidas de pessoas ingênuas ou carentes de conhecimentos religiosos; das violências, discriminações, moralismos retrógrados ou reacionários, perturbações mentais e doenças diversas que tem origem em experiências religiosas orientadas por charlatões ou indivíduos sem preparo mínimo, etc. Mas isso não é tudo nem haverá de ser o espírito dominante de nossa época, de qualquer forma é uma preocupação crescente que exige atitudes da sociedade, e também opções ou definições políticas e jurídicas.
Enfim, concordo que deve haver debate público a respeito dos conteúdos oferecidos na disciplina de ER, bem como da formação necessária para o docente desta área do conhecimento. As pessoas interessadas e representantes de instituições religiosas e educacionais diversas haverão de se reunir para debater, propor e escolher os conteúdos e métodos do ER. Se isso acontecer e houver bom senso por parte de todos os envolvidos o ER dará um passo importante na sua busca e socialização do conhecimento religioso acumulado historicamente. E isso serve também para o ensino de história, geografia, matemática e demais disciplinas.

6. Agência Comunidade – Enfim, como você vê o papel e o futuro do ER? Ele continuará sendo indispensável para a formação integral do ser humano?
Pe. Gilberto Tomazi – A busca do transcendente, negada pelo positivismo tecnicista, deve ser resgatada como aspecto fundamental na formação do ser humano. O sentido religioso já não pode ser negado pela escola, como caminho da ciência. Falar do ER,  hoje, não significa dar aula de catequese ou ensinar uma doutrina religiosa mas, sim, buscar o conhecimento do fenômeno religioso. O ER não mais pode ser confundido com ensino de uma religião, endoutrinamento religioso ou catequese. Ele, indo além do caminho da confessionalidade e da interconfessionalidade, vem buscando, no caminho das religiões, da cultura religiosa e do fenômeno religioso, orientações éticas, ecológicas e até mesmo políticas, em vista da sobrevivência humana e do planeta. A escola está responsabilizada em oferecer conhecimento e princípios ético-religiosos, sem dogmatização nem exclusão de ninguém. O ER é, sem dúvida, parte fundamental da educação integral. Não há como pensar no desenvolvimento das potencialidades humanas, ignorando-se a sua dimensão transcendental. Já não é possível pensar em educação de qualidade desconsiderando a dimensão religiosa do ser humano. É preciso superar a visão proselitista do ER pois as diferentes matrizes culturais e religiosas: orientais, ocidentais, africanas e indígenas tem uma riqueza impressionante a oferecer. Para isso, faz-se necessário um profissional de educação sensível à pluralidade cultural e consciente da complexidade do fenômeno religioso no mundo atual. A valorização do senso religioso, no espaço escolar, ajudará na orientação dos educandos em questões de conhecimento pessoal, na busca do sentido da vida e do transcendente, no despertar da consciência crítica, no reconhecimento do valor e respeito à pluralidade cultural e religiosa do Brasil. Cabe à escola, não apenas socializar o conhecimento religioso historicamente produzido pela humanidade, mas também, construir novos conhecimentos, a partir da interação professor-aluno-vivência religiosa-comunidade. Até mesmo um ateu convicto ou um agnóstico sentir-se-á interessado pelo conhecimento das grandes tradições religiosas, dos ritos e símbolos das mesmas, da cultura religiosa desde os mitos, os textos sagrados orais e escritos, as várias compreensões sobre Deus vivenciados pelas diferentes religiões e culturas. E, desta forma, o ER passará a ser de fundamental importância na formação integral e na emancipação humana e social.

A ignorância, o fundamentalismo e a intransigência religiosa são as principais pedras de tropeço na busca do diálogo religioso e da defesa do ER como disciplina, isto é, como ciência de construção e socialização do conhecimento religioso acumulado historicamente pelas culturas e tradições. O medo, de uns e de outros, é que se queira reduzir as religiões a um denominador comum, onde o que importam são apenas os símbolos e conceitos. Ao contrário, a busca do conhecimento religioso, enquanto pluridimensional, deverá favorecer o encontro entre diferentes experiências e visões mítico-espirituais escondidas no âmago da história e da existência humana e contribuir para que a sociedade inicie um novo tempo, mais democrático, dialogal, fraterno; sem guerras, desigualdades, fanatismos e divisões.

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