As queixas dos ruralistas são crescentes na mídia comercial: sem o glifosato, a próxima safra de milho e soja, que começa em setembro, está em risco. O recado soa como chantagem de um setor que se gaba de alimentar a população da terra e de sustentar o Produto Interno Bruto (PIB) nacional – quando na verdade 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros são produzidos pela agricultura familiar, e não por esse "agro pop, tech e tudo", que emprega pouco e praticamente não paga impostos – inclusive o de exportação.
Para dar mais eco à grita do setor que domina o Congresso Nacional, o sindicato dos fabricantes e indústrias como a Monsanto e a Syngenta, que produzem este e outros agrotóxicos, já avisaram que não conseguem oferecer herbicidas substitutos em quantidade suficiente para o plantio dessas lavouras.
No último dia 3, a juíza federal substituta Luciana Raquel Tolentino de Moura, da 7ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, determinou em caráter liminar que o governo federal não conceda novos registros de produtos que contenham como ingredientes ativos a abamectina, o glifosato e o tiram. E que suspenda, no prazo de 30 dias, o registro de todos os produtos que utilizam tais substâncias até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) conclua os procedimentos de reavaliação toxicológica.
À agência, a magistrada deu prazo final até 31 de dezembro para conclusão dos procedimentos de reavaliação toxicológica das três substâncias. Em caso de descumprimento da decisão, haverá multa diária de R$ 10 mil. E o servidor público responsável pelo atraso no cumprimento da determinação será processado nos âmbitos civil, administrativo e penal.
Ela destaca na determinação o fato de o Brasil conceder registro com prazo de validade indeterminado. “No entanto, o conhecimento técnico científico sobre os ingredientes ativos e, especialmente, sobre o surgimento de perigos e riscos associados ao uso é dinâmico, podendo apresentar novos estudos que imponham a reconsideração toxicológica e os efeitos do ingrediente ativo, razão pela qual a Lei 7.802/1989 e o Decreto 4.074/2002 preveem o procedimento de reavaliação toxicológica.”
Como a decisão afeta diretamente a produção do atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi (PP-MT), que tem sido chamado de "o rei da soja", é ainda maior a pressão sobre a Advocacia-Geral da União (AGU) para derrubar a liminar em primeira instância.
Transgênicos
O glifosato é o agrotóxico mais usado em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o maior consumidor mundial desses agroquímicos, ou "pesticidas", como preferem os ruralistas. Tem aplicação em diversas lavouras, mas é nos cultivos de transgênicos, como soja e milho, que são mais largamente utilizados.
Isso porque essas sementes foram modificadas geneticamente para resistir a doses cada vez maiores do produto, despejadas para combater plantas daninhas cada vez mais resistentes a ele num esforço de sobrevivência da espécie. É a natureza se impondo à tecnologia.
Além disso, é o mais barato dos agrotóxicos, que passou a ser fabricado por muitas empresas desde 2000, quando a patente, que era da Monsanto, expirou. Há um círculo vicioso na produção desses grãos. Sair desse modelo que traz lucros crescentes às empresas que modificam geneticamente as sementes, que são as mesmas que produzem os venenos, torna-se um desafio.
"Tomara que toda essa pressão resulte na agilização da reavaliação pela Anvisa, e que haja prazos para o banimento do glifosato", diz o agrônomo Ruy Muricy, integrante dos fóruns baiano e nacional de combate aos impactos dos agrotóxicos e transgênicos.
O círculo vicioso inclui ainda a aprovação, praticamente automática, de novas plantas transgênicas resistentes a herbicidas. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) faz liberações com base em estudos falhos e insuficientes apresentados pelas empresas.
Em 2007 havia 27 variedades de plantas transgênicas aprovadas para uso comercial no Brasil, sendo elas de milho, soja e algodão. Em 2017, esse número saltou para 75 variedades, que passaram a incluir feijão, eucalipto e cana-de-açúcar. Segundo estudo publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), houve aumento do uso de agrotóxicos em 160% no período de 2000 a 2012 por causa dos transgênicos. No caso da soja geneticamente modificada, o consumo de venenos triplicou.
Condenação
O produto é suspenso no Brasil no momento em que enfrenta adversidades várias partes do mundo. A Monsanto, vendida recentemente para multinacional alemã Bayer, que produz agrotóxicos, transgênicos e medicamentos, foi condenada no último dia 10 pelo júri da Califórnia.
Para os jurados, a empresa é culpada e tem de indenizar em US$ 289 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) o trabalhador Dewayne Johnson, de 46 anos. Conforme a sua defesa, ele desenvolveu um tipo de câncer que destrói as células de defesa do organismo – linfoma – pela exposição constante ao Roundup nos dois anos em que trabalhou como jardineiro em uma escola de São Francisco. Roundup é o nome comercial do glifosato da Monsanto.
A companhia, por meio de sua assessoria de imprensa no Brasil, nega a relação entre o produto e a doença do trabalhador. E informa que a companhia vai apelar da decisão do júri e continuará a defender o produto, que tem "um histórico de 40 anos de uso seguro e continua a ser uma ferramenta vital, eficaz e segura para os agricultores". O prejuízo da empresa não se compara com a do trabalhador, que está pagando com a saúde e com a vida.
Aberrações
Proibido no Sri Lanka, El Salvador e Bermudas, entre outros, o glifosato deve ser banido no âmbito da União Europeia (UE) se depender da França, Itália, Grécia e Áustria. O governo francês quer proibir o produto no seu território até 2022. Esses países levam em consideração a decisão da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), vinculada à Organização das Nações Unidas, que em 2015 enquadrou a substância na categoria 2A. Isso significa que a substância é “provavelmente cancerígena para humanos e comprovadamente cancerígeno para animais”.
Influíram na mudança de posicionamento da agência o estudo conduzido na Universidade de Caen, na França, pelos pesquisadores liderados por Gilles-Eric Seralini. Depois de dois anos alimentando um grupo de ratos com milho transgênico, outro com milho transgênico contendo resíduos de glifosato e um terceiro com milho convencional, sem alteração genética e sem resíduos do produto, observaram tumores, danos nos rins, fígados e outros problemas nos ratos que receberam milho com resíduos de glifosato.
A Anvisa, porém, considera o glifosato pouco tóxico, mas estudos conduzidos pela própria autarquia concluíram que “o tratamento com glifosato mostrou um aumento significativo das aberrações cromossômicas e de presença de micronúcleos nos animais que receberam o glifosato e o benzo-α-pireno”. Além disso, uma nota de 2008, assinada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), afirma que o glifosato reduz a produção de progesterona em mamíferos, afeta a mortalidade de células placentárias e é supostamente carcinogênico.
Até a decisão da juíza Luciana Raquel Tolentino de Moura, os fabricantes do produto "nadavam de braçada" no Brasil. Conforme o Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, de autoria da professora e pesquisadora do Departamento de Geografia da USP, Larissa Mies Bombardi, a legislação brasileira permite absurdos. Para se ter uma ideia, o Brasil permite a presença de resíduos do agrotóxico em quantidade 200 vezes maior que o permitido em países da União Europeia. Na água, o absurdo é sem tamanho: 5 mil vezes.
Coordenador da Comissão de Regulação do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, o advogado Cleber Folgado avalia que os problemas causados pelos agrotóxicos vão além dos prejuízos à saúde pública e o meio ambiente.
Os cofres públicos também são duramente afetados. "A Bahia, por exemplo, deixou de arrecadar em 2016 R$ 69 milhões apenas com isenções do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Quantos leitos hospitalares poderiam ser construídos com essa soma? Quantas ações em agroecologia e produção orgânica poderiam ser subsidiadas? Quantas escolas construídas? Quantas publicações de materiais informativos para a sociedade sobre os riscos dos agrotóxicos e as vantagens dos alimentos sem veneno?”, questiona, lembrando que o montante não inclui a isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do PIS/Pasep e Cofins para alguns agrotóxicos.
Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, movida pelo Psol contra duas cláusulas do Convênio 100/1997, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), e dispositivos da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi), estabelecida pelo Decreto 7.660/2011 que beneficiam a indústria dos agrotóxicos.
A primeira cláusula questionada é a que reduz 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de agrotóxicos nas saídas interestaduais. A segunda autoriza os estados e o Distrito Federal a conceder a mesma redução nas operações internas envolvendo agrotóxicos. Já o decreto concede isenção total de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) aos agrotóxicos. A ADI já teve parecer favorável da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que considera inconstitucionais as isenções a produtos danosos à saúde e ao meio ambiente.
“O glifosato é fonte de lucro para a indústria. Sua proibição traz impactos econômicos à indústria do veneno. Tendo em vista que o Brasil é o pais que mais consome agrotóxicos no mundo, e que mais de 60% dos venenos utilizados aqui tem por base o ingrediente ativo glifosato, imaginar uma possível proibição no pais seria um desastre para a indústria. É por isso que a recente decisão da 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal proibindo o uso dos agrotóxicos abamectina, glifosato e tiram no Brasil causaram tanto ‘bafafá’ nos bastidores do agronegócio brasileiro", destaca Folgado.
Pacote
A suspensão do glifosato e das outras duas substâncias traz mais robustez aos argumentos de especialistas em saúde e meio ambiente. Por meio de pareceres e notas, eles têm advertido autoridades, parlamentares e a sociedade como um todo sobre os perigos do avanço do chamado Pacote do Veneno na Câmara. No final de junho, apesar de forte pressão de entidades nacionais e estrangeiras, os ruralistas conseguiram aprovar substitutivo do também ruralista Luiz Nishimori (PR-PR) para o Projeto de Lei 6.299/2002 e apensados. De autoria do então senador Blairo Maggi, afrouxa ainda mais as regras para o registro, produção, comercialização e uso dos agrotóxicos no Brasil.
O pacote, que atende apenas aos interesses dos ruralistas e da cadeia produtiva dos agrotóxicos, está pronto para ser votado no plenário da Câmara. Segundo analistas, porém, uma medida tão impopular não deverá ser colocada em votação antes das eleições. Nenhum deputado pró-Pacote do Veneno quer comprometer sua reeleição.
Outros venenos
Dos 50 ingredientes ativos mais utilizados no Brasil, 28 já foram proibidos em outros países do mundo. Em 2008, 14 ingredientes ativos de agrotóxicos foram postos em reavaliação pela Anvisa. Apenas seis foram proibidos, 4 foram mantidos e 2 foram proibidos porém determinado um prazo para terminarem os estoques. Foram proibidos porque causam danos à saúde, mas a agência entendeu que deviam ter um prazo para que os estoques fossem comercializados. "Entre garantir os lucros das empresas e a necessidade de proteção imediata da saúde pública e do meio ambiente, optou-se por preservar a vida só após preservar os lucros", destaca Folgado.
Proibido na União Europeia em 2007, o Paraquat foi posto em reavaliação no Brasil no ano seguinte, mas o processo teve início apenas em em 2009. Só em 2015 a Anvisa colocou o produto em consulta pública, com parecer indicando a proibição uma vez que o produto é mutagênico, não tem antídoto e provoca doença de Parkinson. Em 2017 a própria Anvisa reuniu a direção colegiada e decidiu banir o Paraquat. Porém, concedeu prazo de três anos para sua utilização e “desova” dos estoques. Por isso há incertezas quanto ao tratamento que será dado ao glifosato no processo de reavaliação toxicológica.
O enfrentamento requer a organização da sociedade nos movimentos sociais, entidades de Saúde Pública e meio ambiente para dialogar e denunciar os impactos nefastos dos agrotóxicos e apresentar alternativas, como é o caso da produção agroecológica.
"A participação social efetiva deve se dar tanto nos aspectos teóricos, ajudando a pensar as alternativas e produção de informações, bem como na construção prática de tais alternativas. Assim, apoiar Projetos de Lei (municipais, estaduais, federais) que buscam limitar a problemática dos agrotóxicos e promover a agroecologia são uma necessidade para mudança do quadro atual", opina o agrônomo e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Assembleia Legislativa da Bahia, deputado Marcelino Gallo (PT).
Ele destaca ainda a necessidade de massificação das informações, especialmente das alternativas existentes para a superação do círculo vicioso, que passa pela transição agroecológica. Nesse aspecto, destaca, é preciso cobrar do Estado brasileiro as condições técnicas, científicas e financeiras.
Todavia, acredita, a promoção da agroecologia requer medidas concomitantes para a redução do uso de agrotóxicos. Por isso ganha importância o Projeto de Lei 6.670/2016, que propõe a construção da Política Nacional de Redução de Agrotóxico (Pnara) e os projetos de lei estaduais. "É o caso do PL nº 21.916/2016, que cria a Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPO) da Bahia, ou ainda o PL nº 21.314/2015 que propõe a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos no estado", destaca Galo.
Para o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, a realização de audiências públicas pelos fóruns estaduais são extremamente importantes. Afinal, possibilitam esclarecer a sociedade sobre a dimensão do problema, bem como a articulação daqueles que lutam pela promoção da vida contra os venenos.
(RBA)
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