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Abastecer o carro na tomada vai ser uma realidade para poucos no Brasil, sem um plano estratégico articulado
Em fins de novembro, a União Europeia anunciou que pretende zerar a emissão de gases de efeito até 2050, prenunciando o início do fim da era dos combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão. Nesse sentido, a indústria automobilística europeia avança na transição para o carro elétrico. A Volkswagen, por exemplo, comunicou que produzirá os tradicionais motores a combustão apenas até 2026, tentando uma guinada em benefício de sua imagem, depois da crise por conta do escândalo que culminou com a divulgação de índices de poluentes mascarados.
Mas para além dos objetivos climáticos e ecológicos, os europeus pretendem liderar essa nova etapa de desenvolvimento e, de quebra, reduzir a dependência de fontes de energia que estão fora do seu controle direto, já que importam cerca de 90% do petróleo consumido. Trata-se, portanto, de uma decisão estratégica que vai muito além da bandeira verde.
Por aqui, o carro elétrico deve permanecer como uma realidade distante da maioria dos brasileiros nas próximas décadas. A principal crítica é a falta de incentivos mais robustos para a introdução de energias limpas no programa Rota 2030, que estabelece diretrizes para o setor para os próximos anos.
O programa prevê o abatimento fiscal de até R$ 5 bilhões para investimentos em inovação realizados pela indústria automotiva. Uma das metas é aumentar em 12%, nos próximos cinco anos, a eficiência energética dos veículos. Para os carros elétricos, apenas a alíquota de IPI foi reduzida de 25% para uma faixa de 20% a 7%, a depender do grau de eficiência energética do automóvel em questão. A maioria dos países trabalha com isenções totais para esse tipo de veículo.
Mais do que só a entrada do carro elétrico no Brasil, feito com tecnologia importada, a transição para uma nova fase de desenvolvimento da indústria automobilística poderia ser aproveitada para criar, no país, toda uma cadeia de fornecimento para esse novo tipo de veículo. Seria possível pensar até mesmo na criação de um veículo elétrico brasileiro.
Grandes empresas nacionais que se destacam nos ramos de baterias e motores elétricos poderiam liderar esse esforço, desde que contassem com planejamento que também envolvesse o poder público e a representação dos trabalhadores da indústria automotiva. De acordo com especialistas, o modelo de carro elétrico é "relativamente simples", e não demandaria avanços tecnológicos inalcançáveis para nós. A montagem é ainda mais simplificada, por utilizar cerca de um quinto das peças de um motor a combustão.
No ano passado, foram vendidos no Brasil 3.296 veículos elétricos e híbridos (que funcionam com motor elétrico e a combustão), número ainda insignificante diante dos 2,239 milhões comercializados, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Único veículo com motor 100% elétrico comercializado por aqui, o BWM i3 custa em torno de R$ 200 mil. Mesmo com a nova alíquota de imposto,o preço ficaria distante das possibilidades da imensa maioria dos brasileiros. Sem um plano arrojado de transição para essas novas tecnologias, a tendência é que essa realidade excludente permaneça.
Riscos
O presidente do Instituto Trabalho, Indústria e Desenvolvimento (TID-Brasil) – que trata da inovação no mundo do trabalho –, Rafael Marques, considera que a situação pode inclusive piorar. Segundo ele, no bojo do Rota 2030, foi criado um grupo de eletromobilidade, responsável por desenhar o impacto dessas novas tecnologias para os carros produzidos no Brasil.
"Nenhum dos itens apontados por esse grupo entrou no Rota 2030. É um debate ainda incipiente aqui no Brasil. Esse grupo é integrado pelo quase falecido ministério da Indústria e Comércio Exterior e Serviços (MDIC), que Bolsonaro pretende acabar", afirma o presidente do TID-Brasil. As atribuições do MDIC devem parar agora no ministério da Economia, nas mãos de Paulo Guedes, que está mais interessado em privatizar empresas públicas do que pensar num projeto nacional de desenvolvimento da indústria. "É um grande risco para inúmeras políticas industriais que o ministério toca. Para onde vai o monitoramento, execução e normatização do setor automotivo brasileiro? Ninguém sabe. Esses grupos continuarão existindo? É uma grande dúvida."
Marques diz que, se não pensarmos a sério a introdução dessas novas tecnologias, corremos o risco de perder importantes mercados para onde as montadoras brasileiras exportam, como os países do Mercosul, Estados Unidos e China. "As empresas vão se mobilizar de maneira muito lenta, o que vai defasando a indústria nacional em relação às diretrizes estabelecidas pelos principais mercados. Não dá para deixar para o setor privado unicamente. É necessário que o governo tenha uma agenda para mobilizar os produtores nacionais. Se o Brasil não estiver dando passos, evidentemente vai ter problema em acessar esses mercados".
É o que diz o economista João Furtado, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), que também se debruça sobre questões relativas à inovação industrial. Ele diz que, a partir de um plano estratégico que envolvesse empresas nacionais, que contassem com financiamento público em pesquisa e desenvolvimento, seria possível compor um "mosaico tecnológico" que culminaria no projeto do carro elétrico brasileiro.
"Isso obrigaria as multinacionais que estão aqui no Brasil a buscarem soluções equivalentes. Senão, daqui a dez anos, elas vão começar a importar veículos elétricos em larga escala. Depois de mais dez anos importando, quando estivermos atrasadíssimos na absorção dessas novas tecnologias, essas mesmas montadoras vão pedir incentivos fiscais para superar essa defasagem tecnológica em relação aos principais centros produtores do mundo. E aí, lá vão mais 20 anos de subsídios para aprenderem o que a gente pode aprender, desde já."
Furtado também considera como "um dos principais equívocos" do Rota 2030 não pensar a transição para a energia limpa na indústria automobilística. Continuar apostando no motor a combustão, segundo ele, é um beco sem saída para a indústria nacional. "O sistema industrial é movido a desafios, que podem vir de diferentes ambientes. A preocupação dos países europeus com a questão ambiental não é só no sentido de um problema a ser resolvido. Existe um conjunto de oportunidades a serem exploradas. É nisso que eles estão pensando. Não precisam esperar o petróleo acabar. Eles têm tecnologia e vão transformar esse conhecimento para fazer o sistema avançar."
Dependência
Ainda mais cético, o professor de Engenharia de Produção da Poli-USP Mário Sérgio Salerno, diz que, desde o seu nascimento, o setor automobilístico brasileiro passa longe dos principais centros de decisão, e está subordinado aos interesses das matrizes europeias e americanas. No Brasil, segundo ele, a obsolescência funciona como estratégia das montadoras para conseguir arrancar subsídios governamentais. "Funcionou assim nos últimos 30 anos, é como funciona hoje e dificilmente vai mudar", lamenta.
"O problema é que as montadoras já têm seus motores ou fornecedores de motores elétricos. Francamente, que empresário brasileiro vai investir no setor automobilístico hoje? É muito dinheiro para um retorno muito lento. Tem que projetar o carro, montar fábricas, uma rede de revenda, financiamento, propaganda, para uma marca a partir do zero? Não é trivial."
Segundo ele, nunca houve experiência robusta de motores sendo desenvolvidos no Brasil. Isso implica inclusive no baixo grau de eficiência energética para os veículos que rodam por aqui, pois os motores norte-americanos e europeus foram planejados para configurações específicas de combustíveis utilizados nesses países.
"Até hoje não se sabe como se dá a queima de combustível em motores a álcool. Os motores que temos aqui são estupidamente ineficientes porque foram projetados para um tipo de combustível diferente", diz Salerno. Para ele, antes de se pensar no carro elétrico, uma saída seria investir em estudos que garantiriam maior eficiência dos veículos movidos a etanol, que também tem baixa pegada de carbono, emitindo menor quantidade de poluentes.
Indústria petroleira
Integrante da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Hebert Campos diz que, com ou sem a participação do Estado, o papel da indústria do petróleo, nas próximas décadas, é financiar a transição para energias renováveis. Nesse período de transição, que já vivenciamos, mas que pode perdurar por décadas, o petróleo vai continuar coexistindo com outras fontes de energia limpa. Ele compara com o carvão que, mesmo tendo sido substituído pelo petróleo, no início do século 20, ainda está presente na matriz energética até mesmo de países desenvolvidos.
"Entre todas as 20 maiores petroleiras, a tendência é virarem empresas de energia. A Shell (anglo-holandesa) comemora que é a maior produtora de álcool do mundo. A Total (francesa), a maior em energia eólica offshore (em alto-mar). A Equinor (Noruega) é a maior produtora terrestre de energia eólica. Todo esse desenvolvimento tecnológico só foi possível graças à renda do petróleo. Seja estatal ou não, a renda do petróleo vem sendo investida em novas fontes de energia."
Ele também defende o papel do Estado para articular a transição do petróleo para as formas de energia limpa, com uma política que tribute mais pesadamente as indústrias poluidoras, convertendo em incentivos fiscais para as iniciativas mais verdes. Contudo, ele aponta que esse também é um caminho tortuoso, pois o preço da energia impacta o conjunto da população, bem como todos os setores da economia.
Ele lembra, por exemplo, que a atual onda de manifestações na França começou após iniciativa do governo do presidente Emannuel Macron de tentar "qualificar" o consumo de energia no país, elevando impostos sobre combustíveis fósseis, sintonizada com o espírito do Acordo de Paris. Após sucessivos protestos na capital francesa dos chamados "coletes amarelos", Macron se viu obrigado a recuar, e o governo anunciou a suspensão por seis meses do aumento de impostos sobre os combustíveis fósseis.
No Plano de Negócios e Gestão (PNG) da Petrobras divulgado recentemente para o período de 2019 a 2023, a previsão de investimentos totais é de US$ 84,1 bilhões. Desse montante, US$ 400 milhões (ou 0,47%) serão investidos em energias limpas e renováveis – que inclui energia eólica, solar e biocombustíveis –, no chamado de "Movimento para o Futuro". No final das contas, o futuro nunca chega tão depressa como gostaríamos.
fonte:RBA
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