quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

PREVIDÊNCIA: Debate alerta para fracasso da previdência privada do Chile e riscos para o Brasil

Opção individualista adotada pela ditadura chilena é cogitada para substituir o conceito solidário do Brasil. Professor teme que 2019 marque o fim do "breve ciclo da cidadania" no país

Movimento No Más AFP
Modelo gerido por Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) tem sido alvo de protestos - MOVIMENTO NO+AFP
São Paulo – "Previdência não existe sem solidariedade", disse José Ricardo Sasseron quase ao final de seminário realizado nesta terça-feira (4), em São Paulo, que discutia o destino da Previdência e os rumos do país a partir de 2019. Diretor da Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão(Anapar), Sasseron participou do debate sobre os modelos previdenciários brasileiro e chileno.
Uma das várias especulações sobre o futuro governo trata da adaptação, aqui, do sistema implementado no Chile ainda sob a ditadura Pinochet. Baseado em capitalização, o modelo consistiu, no início dos anos 1980, na transferência de todas as contribuições previdenciárias de trabalhadores para Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) – instituições privadas, a maioria ligadas a grandes bancos e sem participação dos contribuintes na gestão.
O modelo é alvo de críticas e protestos, por excluir grande parte da população e desobrigar as empresas de contribuírem. E está sendo revisto pelo país por não conseguir cumprir a finalidade de assegurar aposentadorias aos trabalhadores.
Sasseron conta que participou de atividade, no país vizinho, do movimento No Más AFP, por mudanças na previdência e restabelecimento do sistema público. "O que me chamou muito a atenção é que a grande maioria era de jovens, preocupados com seu futuro. É um tema que mobiliza e traz preocupação para todos nós", afirmou.
O professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que ainda não há clareza sobre o que fará o governo Bolsonaro – se um aprofundamento da reforma tentada por Temer ou a criação de bases para adoção do modelo chileno. Seja qual for a opção, ele receia que 2019 marque o fim do "breve ciclo de cidadania no Brasil", com o desmonte de "um sistema de proteção social extraordinário".
DIVULGAÇÃO
previdência
Andras Utkoff: 'No Chile, o monstro consiste em termos posto o mercado para cuidar dos direitos sociais'
Para Fagnani, já está em curso um "desmonte" do Estado de bem-estar social surgido a partir da Constituição de 1988. Sinais disso, aponta, são a Emenda Constitucional 95, de teto dos gastos, a ampliação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e as "reformas" trabalhista (já implementada), previdenciária e tributária (pelo menos como vem sendo traçada).

Modelo chileno criou monstro

"A Constituição é um marco no processo civilizatório brasileiro", diz Fagnani, para constatar, com tristeza, que o período de 30 anos pós-Carta, com ampliação de direitos sociais, "são um ponto fora da curva do capitalismo brasileiro, que é tosco, arcaico, não admite sequer princípios básicos de social-democracia". Estas três décadas corresponderam ao único período da história brasileira com, ao menos teoricamente, efetivos direitos civis, sociais e políticos. Para ele, a Constituição de 1988 foi feita "na contramão do mundo". O que estava na "moda", acrescenta, era justamente o Chile com seu modelo econômico trazido pelos chamados Chicago boys, economistas neoliberais norte-americanos. "Agora, temos os Chicago velhos", ironiza.
"O modelo chileno é um seguro social, só tem direito quem paga. E a seguridade social é um pacto com a sociedade", compara o professor da Unicamp, que falou logo depois do consultor internacional Andras Ufhoff, assessor regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
"No Chile, estamos com medo, porque temos um monstro, que é real. Esse monstro consiste em termos posto o mercado para cuidar dos direitos sociais", afirmou Ufhoff sobre o sistema previdenciário chileno. Medo era um dos motes do seminário, aberto pela professora e psicóloga Ana Bock. O evento foi organizado pelo escritório do advogado Ericsson Crivelli.
"Temos de alterar a Constituição, o que é difícil de conseguir", acrescentou o assessor da OIT, para quem o modelo, criado em 1981, serviu de poupança para grupos financeiros internacionais. "É um sistema que absolutamente não funcionou." Segundo ele, não há seguridade social no Chile, mas um mercado em que o trabalhador não contribui para uma aposentadoria, mas uma poupança. Os empregadores não participam. "Não há proteção social. O que acontece com quem não tem capacidade de poupança? Nesse modelo não há nenhum direito. A lógica desse sistema é individual."
Entre outros resultados, segundo ele, 89% dos aposentados têm rendimento abaixo do salário mínimo, equivalente a US$ 420. Idosos passaram a viver com 20%, 30% do que recebiam. Os movimentos contra o modelo e pela volta do sistema público acontecem, mas enfrentam certo desânimo da população ("As pessoas estão cansadas de sair às ruas, de reclamar, sem que alguma coisa aconteça") e esbarram também em forte resistência empresarial.
Para Fagnani, a partir de 2016, com o impeachment, o Brasil passou a viver uma "radicalização do projeto ultraliberal, que certamente terá continuidade no ano que vem". Ele destaca o impacto da Previdência na redução da pobreza e da desigualdade no país. "Oitenta por cento dos idosos têm ao menos a Previdência como fonte de renda."
Defensores da reforma desprezam dados da realidade brasileira, diz o professor, citando estudo do Dieese sobre a rotatividade: ainda antes da "reforma" trabalhista, o trabalhador contribuía apenas nove a cada 12 meses. Ele observa ainda que a sociedade é extremamente desigual e heterogênea. Apenas na cidade de São Paulo, lembra Fagnani, citando dados da Rede Nossa São Paulo, a expectativa de vida em Pinheiros, bairro nobre da zona oeste, é de 79 anos, enquanto em Cidade Tiradentes, no extremo leste, cai para 53 anos.

Terror e mitos

Para forçar mudanças na previdência, apela-se para o "terror" demográfico e econômico. "O governo diz que vai ter um déficit, mas não tem um modelo atuarial. Tudo que se fala sobre catástrofe em 2060 é chute, não tem base científica", contesta o economista, para quem há um debate "baseado em mitos", agora chamados de fake news.
Um dos mitos é o de que há aposentadoria "precoce" no Brasil. Segundo ele, o trabalhador urbano se aposenta em média com 63 anos e o rural, com 58. Entre outras mudanças, o governo queria adotar uma idade mínima única de 65 anos, além de esticar o tempo de contribuição. "Esse cálculo desconsidera a realidade social do Brasil", afirma Fagnani. Para ele, a extinção do direito de proteção à velhice afronta a Declaração Universal dos Direitos do Homem. 
Ainda na mudança tentada sem sucesso por Temer, dizia-se que haveria redução de custos de R$ 500 bilhões em 10 anos. Mas Fagnani lembra que esse valor é superado de longe por isenções, sonegação e pagamento de juros. "O sonegador no Brasil é beneficiado com financiamento."
Ele avalia que mesmo para o próximo governo não será fácil aprovar uma reforma, seja qual for. "Agora, tem de ter mobilização (para resistir). E subsídio técnico", aponta.

fonte:RBA

Nenhum comentário:

Postar um comentário