A cena remete a um conflito histórico sem fim. Barracos de lona foram erguidos em um terreno retirado do centro da cidade de São Miguel do Oeste, no interior do estado de Santa Catarina. Indígenas Kaingang, de Tenente Portela (RS), foram ‘convidados’ a se retirar do espaço da rodoviária onde todos os anos, nesta época, costumavam comercializar seus artesanatos, o trabalho que lhes garante um pouco de dinheiro para circular por outras regiões e comprar alguns agrados para suas crianças.
O motivo, segundo a indígena Juliana Cristão, 23 anos, é de que o dono da rodoviária não estava satisfeito com a presença das ‘gentes’ por ali. “A gente sempre vinha aqui só que eles não falavam nada, e agora falaram que a gente não podia ficar lá. O dono daquele terreno não queria que a gente ficasse lá”, disse ela.
Depois de terem sidos obrigados a sair do espaço da rodoviária, Juliana disse que receberam lonas para montar alguns barracos ainda na semana passada, mas que, nenhum órgão prestou alguma assistência ou explicação mais concisa. Juliana conta ainda que não foi possível se proteger da chuva e do forte vento, que acabou levantando as lonas e deixando todos\as molhados\as nesta última semana. “Choveu, nós molhamos tudo, e lá na rodoviária não se molhava porque a gente ia na rodoviária se proteger”, disse ela.
Além do problema com a chuva, os indígenas estão com poucos alimentos, já que, foram retirados do espaço onde trabalhavam vendendo os artesanatos que produzem. “Não tá saindo muito ‘brique’ e a gente não tá comprando muita coisa. Tem pouca comida. Trouxeram nós pra cá, mandaram lona e deixaram nós assim. Botaram nossas coisas no caminhão, as crianças vieram junto com eles e a gente venho de a pé para cá”, contou Juliana.
Comerciantes pediram a retirada dos indígenas da rodoviária
Depois de algumas denúncias de que os indígenas estariam ocupando o espaço da rodoviária para dormir, comerciantes solicitaram ao Ministério Público uma sugestão de realocar as famílias para que não dormissem em frente aos mercados e farmácias da rodoviária. O Comerciante José Luiz de Oliveira, faz sua defesa. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem que vão levar da cidade? Eles tem por mania vir para cá, fazem suas necessidades aqui no chão da rodoviária também”, disse ele.
Por conta dessa denúncia, o Ministério Público encaminhou a secretaria de Assistência Social e prefeitura de São Miguel do Oeste, um documento solicitando uma área adequada para as famílias passarem esse período de final de ano. “Eles tem direito de ir e vir, mas estavam ficando em área que é de pessoa particular. Colocamos todos eles dentro de um caminhão e levamos eles até uma nova área. Todos os dias estamos recebendo denúncias. Agora o encaminhamento é de que se não quiserem ir até a área que a gente arrumou, até a polícia pode ser acionada. Não podem mais ficar naquele local”, afirmou a secretária de Assistência Social, Claudete Fabiani.
‘Cidade limpa’
Lembrei-me do que Zygmunt Bauman mencionava ao falar do “sonho da pureza”. Mais um natal capitalizado aproxima-se de uma cidade que tem sangue indígena e caboclo estampado nas estátuas de ‘colonizadores’. Quem conhece a história de São Miguel do Oeste, sabe muito bem da negação que se faz ao povo indígena e caboclo que também ‘foi convidado’ a se retirar da cidade, quando a antiga Vila Oeste se formara. Gentes que levantaram os prédios, que serviram de mão de obra barata, foram explorados\as em nome da colonização.
E os indígenas? que tem seu costume diferenciado, que produzem artesanatos riquíssimos, mas que não compreendem a troca e venda de terra, porque ela representa vida, ela é mãe. A dizimação indígena está representada no machado do ‘grande colonizador’ que enfeita hoje uma das principais rótulas da cidade. “Agora o encaminhamento é de que se não quiserem ir até a área que a gente arrumou, até a polícia pode ser acionada”. Esta fala chama muito a atenção. Primeiro foram dizimados, ‘convidados a se retirar’, foram mortos e até hoje são perseguidos e em São Miguel do Oeste, novamente esta cena se repete.
“Incômodo...Perturbação...Sujeira...”, estas foram falas proferidas nos depoimentos que referiram-se aos indígenas nesta matéria. Logo, se este conflito se repete, é mais um sinal de que a nossa história carrega uma dívida imensa com estas populações. Primeiro expulsaram os indígenas de suas terras e agora reclamam que as crianças tornaram-se ‘pedintes’? arrancaram-lhe as moradias, os filhos\as, afastando suas gentes da terra mãe, do cuidado com as plantas e animais e agora chamam-nos de intrusos?
Enquanto tiver um indígena, um caboclo, um negro, um branco…Enquanto existir um ser humano passando necessidade, é certo que os conflitos existirão. É mais certo ainda que este sistema não nos serve, pois alimenta uns e deixa morrer de fome, com a dignidade ferida outra parcela. Que o cartão Postal de São Miguel do Oeste não seja representado pelo ‘sonho da pureza’, pela indiferença, pelo medo a alteridade.
Fotos: Claudia Weinman e Paulo Fortes. (PJMP\PJR-SC).
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