terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O sagrado e o profano: as mulatas e o racismo


Adital
Por Mariana Assis dos Santos para as Blogueiras Negras
Há muito tempo uma imagem não me choca e magoa tanto quanto essa das candidatas a mulata Globeleza, exibidas pela Sharon Menezes. Mil questões polêmicas e dolorosas vêm à tona diante de uma cena tão agressiva e violenta. A primeira delas tem a ver com o nosso lugar nas grandes mídias e a construção de nossa autoestima. A luta pela visibilidade negra é totalmente legítima e urgente, porém precisamos nos questionar que lugar queremos ocupar? Ver mulheres expondo seus corpos para avaliação é algo bastante comum e faz parte da luta feminista combater esse tipo de "hábito” da nossa mídia. Isso já seria motivo suficiente para execrarmos essa situação, porém há um agravante, que também coloca mais lenha na fogueira do feminismo branco e negro, expor mulheres negras dessa forma não nos ofende apenas por nos sentir meros corpos esvaziados e sem personalidade, essa situação nos remete a um passado recente quando éramos, de fato, coisas, criaturas sem alma, cuja única função era reproduzir e dar prazer aos nossos algozes.
Corpos sem rosto, apenas bundas e coxas bem torneadas, foi a isso que reduziram as nossas bailarinas, as bailarinas do samba, artistas da sensualidade e do gingado ancestral e sagrado trazido de África, marcado em nosso DNA. Era esse talento que deveria ser avaliado, sua dança, a força de seus corpos, a precisão dos movimento perfeitos que só uma boa passista consegue alcançar por ter a paixão do samba correndo nas veias, na ponta do pé. Aqueles que conseguem olhar a nossa cultura com os olhos apaixonados de quem realmente incorporou sua ancestralidade negra, já deve ter ficado maravilhado com a beleza, destreza e talento dessas mulheres, dançarinas formadas nas rodas de samba dos becos e vielas; guetos e favelas da vida, cujos quadris, pernas e pés são instrumentos que mantêm vivo nosso amor pela dança, nossos laços com África.
O corpo da mulher negra quando dança torna-se divino, mas em nossa sociedade racista, com sua limitada dicotomia entre sagrado e profano não é possível pensar em divindades sensuais e belas, com desejos e defeitos; em rituais sagrados e alegres, onde as pessoas se divertem, dançam, cantam, amam e odeiam; isso jamais seria respeitado da forma que deveria. Por isso mesmo esses corpos serão sempre apenas corpos, apenas carne, apenas um deleite para os olhos e os desejos de homens brancos que continuam escolhendo negrinhas para aquecer suas noites solitárias, negrinhas que rebolam e requebram para seduzí-lo, afinal estão ali pra isso: agradar seus senhores e enlouquecer suas senhoras de ciúmes.
Somos eternas Negras Fulô e vemos a ordem escravocrata ser reproduzida em cada comentário grosseiro e despeitado quanto às nossas belas passistas, quando ouvimos homens brancos encherem a boca para falar de seus casos amorosos com mulheres negras e suas infinitas habilidades sexuais, ao mesmo tempo em que ostentam suas boas senhoras brancas ao lado; também quando vemos nossos irmãos patrocinarem o vilão. Foi doloroso ver a Sheron Menezes protagonizando a palhaçada, por sua importância para nossas lutas, por ser uma atriz negra, presente em diversas produções da maior emissora de televisão do país, ostentando uma belíssima cabeleira totalmente natural, na lamentável imagem faz às vezes do comerciante de escravos, comercializando suas irmãs como peças de carne.
As mulatas, que se apropriaram da denominação terrível e transformaram em um símbolo de sua arte, estão ali expostas como as criaturas sem alma em que tentaram transformar nossos ancestrais no passado, estão ali vendo seu talento ser vulgarizado, sua cultura ser reduzida à farra vulgar da dominação branca incapaz de entender a importância do nosso carnaval, a intensidade de nossa música e dança, o que há de sagrado em nossa folia e, consequentemente, em nossos corpos, sensuais, envolventes e lindos, mas que não é pro seu bico!!!
*Mariana Santos de Assis é formada em letras e mestranda em linguística aplicada na Unicamp, militante no Núcleo de Consciência Negra e na Frente Pró-Cotas da Unicamp. Escreve no blog conversaafiadaca.blogspot.com.br

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